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A revolução dos Cravos narrado por um militar de Abril

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Nascido em 1946, o nosso ilustre professor Doutor Carlos Fraga frequentou o ensino secundário no Liceu Nacional de Ponta Delgada, tendo se licenciado anos mais tarde em Direito na Universidade de Coimbra. Foi incorporado no exército em outubro de 1972, tendo sido chamado para a guerra na Guiné como alferes miliciano em julho de 1973. Regressou em novembro do mesmo ano.
 
Como Tenente foi comandante de Companhia estando em Penafiel aquando do 25 de Abril de 1974. Em junho de 1974, como Capitão, foi com a Companhia que comandava para Moçambique de onde regressou em Março de 1975. Juiz de Direito durante 20 anos, mestre em Direito pela Universidade de Lisboa, doutorado em Direito pela Universidade de Sevilha, pós-doutorado pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, formador na Ordem dos Advogados de 2011 a 2017, investigador do Centro de Administração e Políticas Públicas, no Instituto do Oriente e no Centro de Estudos Avançados de Direito Francisco Suaréz e professor universitário, tem diversas obras publicadas, das quais se destacam vários livros e artigos.

Q: Como soube que a revolução estava a acontecer?

A: De uma forma extremamente simples. Ao contrário do que as pessoas pensam, o Movimento das Forças Armadas não começou cá, mas sim na Guiné.  A situação na Guiné em termos de guerra estava muito má e não havia solução militar para as guerras coloniais mas sim política. Pretendeu-se mais 20 batalhões para aguentar a situação a nível militar na Guiné para deste modo se ganhar tempo para uma negociação para uma solução política. Marcello Caetano recusou os 20 batalhões. E disse que preferia uma derrota militar na Guiné a negociar com terroristas. Ora, na Guiné não estávamos para sofrer uma derrota militar. Na sequência dessa tomada de posição do professor Marcello Caetano houve, em Agosto de 1973, uma reunião de oficiais subalternos em Bissau onde se aventou a hipótese de um golpe militar.

Para além disso, juntava-se ainda a questão dos puros e dos expurios, uma situação que criou um grande mal estar nas forças armadas entre os oficiais do quadro permanente. Visto que havia falta de oficiais para a guerra, o Governo resolveu que os militares milicianos que já tivessem feito uma comissão de 2 anos regressavam e se quisessem continuar na tropa faziam um ano de Academia Militar e saiam de lá com uma patente superior e passavam à frente daqueles que tinham entrado como cadetes na academia militar e tinham feito todo o percurso militar. Claro é que esta situação criou uma grande perturbação entre os oficiais do quadro permanente. Surgiu a questão dos puros  e expurios em que os puros os oficiais do quadro permanente eram os puros e os expúrios os do quadro permanente oriundos de milicianos. Estas situações em conjunto com 13 anos de guerra colonial contribuíram para tudo isto e para a posterior revolução. 

E houve então a já referida reunião de oficiais subalternos em Bissau em Agosto de 1973 e em que se pôs a hipótese de uma mudança de regime. Já estávamos também fartos de uma guerra colonial de 13 anos em 3 frentes. Nesse mesmo dia depois da reunião em que só participaram oficiais do quadro, eu precisei de falar com o meu capitão de operações, que foi um dos oficiais que participou nesta reunião e enquanto eu esperava que acabasse de falar com outro capitão que também tinha estado na reunião, isto num passeio dentro do quartel, eu estava a cerca de 3 ou 4 metros deles e ouvia o que diziam. A certa altura eles aperceberam-se da minha presença e  um dos capitães perguntou-me se eu tinha ouvido o que eles tinham dito e qual era a minha posição, eu respondi que tinha ouvido e que concordava. E foi aí que eles me disseram que já tinham contactado com os camaradas de Angola e da Metrópole para saber qual era a sensibilidade deles para a eventualidade de fazermos um golpe militar. E foi assim que eu soube do MFA e aderi no dia que ele começou. Foi de forma acidental.

 

Q: Onde estava e quais foram as suas ações no dia em que se deu o golpe militar?

A: Eu depois de sair da Guiné fui para Mafra . Havia já duas estruturas nos militares: a oficial militar e a clandestina do MFA à qual eu pertencia. Em Mafra continuei ligado ao MFA e mais tarde fui para Penafiel formar batalhão (3 companhias). No mesmo quartel comigo estava o famoso capitão Dinis de Almeida, que é um dos mais famosos capitães de abril conhecido, também,  por ter ido soltar os presos políticos de Peniche. Entre nós trocávamos ideias depois das reuniões do MFA sobre com quem poderíamos contar e o que íamos ou não fazer e assim fui acompanhando a evolução da preparação do golpe. De acrescentar que tivemos o Golpe das Caldas de 16 de março, em que o regimento das Caldas avançou sozinho sobre Lisboa e foi intercetado pelas próprias tropas do Movimento. Foi uma saída prematura dado que o planeamento do golpe ainda não estava terminado.

No dia 25 de abril, entretanto, o Capitão Diniz de almeida foi como punição transferido para a Figueira da Foz e as ordens que tive do MFA foram de avançar sobre o Porto com a minha companhia e uma outra. Eu devia esperar um pelotão de paraquedistas que se reuniria a nós e avançarmos para o Porto. Os paraquedistas não apareciam e aí entrei em contacto com o quartel do Porto (fui inclusive no meu carro particular de Penafiel ao Porto perceber o ponto de situação) e o comandante da Região Militar do Norte, que já era dos nossos, disse que a situação no Porto já estava segura mas estavam com receio do batalhão de Vila real, e as novas ordens que recebi foram de controlar o quartel de Penafiel, vedar a estrada de acesso a Vila real e controlar uma barragem que existia ali na zona visto que era real o receio de que esta fosse sabotada pelas forças do regime. Já posteriormente ao golpe  acabei por prender 2 inspetores da PIDE.

 Q: Alguma vez esteve preso pela PIDE ou conheceu alguém que tivesse sido preso?

A: Se conheci pessoas que estiveram presas pela PIDE? Conheci. Quanto a mim… Eu sei que era controlado e cheguei a ser vigiado até à porta de casa, mas nunca fui preso. Porém participei muito ativamente na crise estudantil de Coimbra de 1969 e várias vezes andei a fugir da polícia de choque. Uma vez tive uma situação curiosa e que mostra que a população apoiava os estudantes. Quando estávamos a fugir da polícia de choque apareceu uma senhora que nos abriu a porta de casa e nos disse para entrarmos e nós automaticamente entramos enquanto a polícia, que não viu, continuou a correr rua abaixo. Durante esta crise sei de várias pessoas que estiveram presas.

 

Q: O 25 de Abril foi aquilo que se esperava que fosse numa perspetiva mais política?

A: O 25 de abril tinha como ideia acabar com a guerra colonial e instaurar uma democracia representativa em Portugal. Está tudo no Programa das Forças Armadas. Digamos que a parte das guerras coloniais foi conseguida, mas no resto, pode-se dizer que em Portugal houve tendências diferentes. Eu lembro-me que 2 ou 3 dias depois do 25 de Abril num quartel muito importante que era o Regimento de Artilharia da Serra do Pilar em Vila Nova De Gaia, alguém disse na sala de oficiais: “isto já está e agora vamos instaurar um socialismo tipo Cuba ou Jugoslávia”. O que na altura pensei ser uma opinião pessoal afinal era  uma tendência que predominou dentro das forças armadas. Inclusive na Constituição de 1976 na versão inicial temos muitas referências ao socialismo e ao marxismo-leninismo. Havia um setor politizado dentro do MFA com estas tendências e foi este setor que predominou dentro das forças armadas até ao 25 de novembro. Claro que os objetivos eram criar partidos políticos e restaurar valores  que até então não existiam, como, por exemplo, a liberdade de expressão, liberdade de imprensa, a libertação dos presos políticos entre outras, como consta do Programa do MFA.

 

Q: Do ponto de vista de um militar que esteve envolvido na revolução, qual foi a reação da população civil a todos aqueles movimentos de tropas nas ruas?

A: Digamos que a população aderiu completamente. Nós fomos os aclamados “libertadores” depois de quase 48 anos de ditadura. Depois mais tarde percebemos que afinal existiam apenas meia dúzia de pessoas que suportavam o regime. Mas quando vi as fotografias e vídeos do quartel do Carmo fiquei aterrorizado porque se por acaso tivessem existido confrontos e um tiroteio entre as forças, morreriam uma grande quantidade civis apanhados no fogo cruzado. Os civis nas operações militares só servem para atrapalhar e nós ficaríamos limitados para não tentar atingir civis. De resto, fomos completamente bem recebidos pela população. Houve aquela célebre cena dos cravos. Eu pessoalmente tive uma cena que me impressionou que foi quando entrei num café fardado e armado, como  naqueles dias andávamos, houve um indivíduo que estava muito emocionado com toda aquela situação porque tinha perdido o filho morto pela PIDE e que queria uma recordação daquele dia e eu então tirei uma bala do carregador da G3 e dei-lhe como recordação.

 

Q: Como se viveram os meses posteriores aos 25 de abril e durante a altura do PREC tanto do lado civil como militar?

A: Eu estive fora dos conflitos que existiram dentro do ramo das forças armadas porque 2 meses depois do 25 de abril, fui mobilizado para Moçambique para aquilo a que se chamou de “Descolonização” e as informações que tive do que se passava por cá era sobretudo através das notícias. Regressei em 1975 e ainda apanhei uma situação de quase guerra civil com o setor de esquerda das forças armadas a dominar, as ocupações selvagens, os julgamentos populares, etc, no que se designou por PREC  e que quase levou a uma guerra civil.  Apanhei ainda essa situação, mas não tive qualquer envolvimento na mesma. Terminei a tropa em 1977 nos Açores. Acompanhei todas essas convulsões e o golpe de 11 de março de 1975 que foi um golpe totalmente de esquerda contrariado pelo 25 de novembro de 1975. O meu quartel ficava ao lado da Polícia Militar que era um dos quartéis totalmente de esquerda e quando a polícia militar foi assaltada pelos comandos da Amadora estava um soldado da polícia militar acidentalmente no nosso quartel e estávamos nós todos na parada. O polícia militar atravessou a parada a rastejar e foi uma situação bastante caricata porque nós não corríamos perigo nenhum e estávamos de pé à volta da parada e o individuo a rastejar como se estivesse sob uma saraivada de balas. Fartámo-nos de rir com a cena.

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