Notário por um dia...
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Dra. Maria João Pereira, licenciada pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, pós-graduada em direito do urbanismo e em registos e notariado, é a nossa convidada deste mês que nos vem contar o motivo pelo qual decidiu optar pelo mundo do notariado, assim como esclarecer-nos alguns pontos sobre esta profissão de prestígio.
Q: O que a levou a escolher o curso de Direito e posteriormente enveredar pela carreira do notariado?
A: Escolhi o curso de Direito pela sua abrangência e não propriamente para seguir uma profissão jurídica. Com efeito, o direito está presente no nosso dia à dia, em todos os atos que praticamos, mesmo que à primeira vista não pareça.
Detestei o primeiro ano, mas a partir do segundo ano fiquei completamente apaixonada e atualmente não me imaginaria numa carreira que não fosse jurídica. Inicialmente pensei seguir a Magistratura ou Registos e Notariado. Contudo, quando acabei o meu curso inscrevi-me na Ordem dos Advogados e comecei a estagiar e adorei de tal forma que fui advogada durante 12 anos.
Contudo, comecei a sentir-me desmotivada com o Estado da Justiça e uma vez que ainda tinha o “bichinho do notariado” decidi experimentar e, hoje, não me imagino a regressar à advocacia. Adoro o que faço, adoro ser notária.
Q: Que requisitos e fases são necessários preencher e que fases são precisas percorrer para que se possa exercer?
A: É necessária licenciatura em Direito, inscrição na ordem dos notários e realizar um estágio de 18 meses, o qual tem duas fases, uma teórica e uma prática em cartório notarial com o Orientador (Notário com pelo menos 5 anos de exercício das funções notariais). Após a conclusão do estágio, o título de notário obtém-se por concurso aberto com aviso do Ministério da Justiça. Sendo posteriormente necessário prestar provas públicas de avaliação da capacidade que têm uma parte escrita e uma parte oral e são realizadas nos termos previsto no concurso, cuja média final não pode ser inferior a 12 valores. Posteriormente tem de concorrer no concurso público para atribuição licença para instalação de Cartório Notarial, cujas vagas serão atribuídas de acordo com a graduação dos candidatos.
A formação notarial tem a particularidade de ter duas vertentes, uma de profissional liberal e outra de oficial público. Somos dotados de fé pública e por isso dependemos não só da ordem dos notários mas também do Ministério da Justiça, sendo este último a nossa hierarquia máxima.
Q: Que funções são exercidas no dia-a-dia de um notário e quais são as principais áreas de intervenção?
A nossa intervenção máxima é redigir o instrumento público conforme a vontade dos interessados, devendo para tal tentar interpretá-la e conformá-la ao ordenamento jurídico. Compete em especial ao notário a autenticação de documentos, lavrar testamentos, exarar termos de autenticação, passar certificados de facto, lavrar instrumentos de atas de reuniões dos órgãos sociais, reconhecimento de assinaturas, exarar escrituras públicas várias, dirigir todas as diligências dos processos e inventários que nos sejam cometidos.
Os nossos documentos, pelo seu carácter de fé pública, são aceites em qualquer parte do Mundo. No fundo o que fazemos é conformar a vontade dos interessados com a lei. Sendo que o notário é o jurista a cujos documentos escritos é conferida fé pública e é, simultaneamente, um oficial público que confere autenticidade aos documentos e assegura o seu arquivo e um profissional liberal que atua de forma independente, imparcial e por livre escolha dos interessados.
A natureza pública e privada da função notarial é incindível. Pelo que, temos um papel fundamental na prevenção de litígios entre as partes, uma vez que exercemos as nossas funções em nome próprio e sob nossa responsabilidade, com respeito pelos princípios da legalidade, autonomia, imparcialidade, exclusividade e livre escolha.
Q: Os documentos exarados por um notário, como sabemos, têm uma força probatória muito elevada, dados todos os requisitos da sua celebração. No entanto, há alguns anos tornou-se possível que certos negócios jurídicos, como a compra e venda de uma casa, possam ser feitos com um Solicitador ou um Advogado, por exemplo, mediante Documento Particular Autenticado. Sente que essa medida teve impacto na sua profissão, ou as pessoas continuam a preferir uma escritura pública pela segurança jurídica que lhes confere, assim como a confiança no próprio Notário por ser um ato que as pessoas em geral estão mais habituadas?
A: É claro que teve impacto, nós deixamos de ser cerca de 500 profissionais a praticar esse tipo de atos para passarmos a ser cerca de 50.000, pelo que é óbvio que tem impacto em termos profissionais. Na verdade, a maior parte dos atos que se faziam por escritura pública com intervenção bancária, passaram a ser feitas por documento particular autenticado com intervenção de advogado ou solicitador.
Contudo, quando o consumidor está devidamente informado julgo que no geral opta pela escritura pública, pois além de ser um documento dotado de fé pública, é acompanhado por profissional com formação específica na elaboração deste tipo de documentos. Aliás os notários são os únicos profissionais liberais que podem lavrar documentos autênticos com força probatória plena.
Q: Qual é a sua opinião sobre a limitação de notários e respectivos cartórios, considera que é um fator que desmotiva algumas pessoas a seguir essa área?
A: A limitação dos notários é uma limitação territorial e está sujeita um número de licenças por concelho, determinado pela densidade populacional cujo mapa notarial se encontra anexo ao estatuto do notariado.
A nossa competência é exercida exclusivamente dentro do Município onde se encontra instalado o Cartório, sem prejuízo, obviamente, de podermos praticar todos os atos das pessoas que nos procurem, mesmo que digam respeito a bens fora do concelho ou a pessoas domiciliadas noutro local do país ou no estrangeiro.
Ora, esta circunstância, atendendo ao facto de atualmente concorrermos, nalgumas matérias, com outros profissionais que não possuem competência territorial, é-nos prejudicial. Contudo, também nos dá um certo prestígio no sentido de sermos profissionais dotados de fé pública que obrigatoriamente têm de ter instalações abertas ao público durante os dias úteis pelo menos durante sete horas.
A nossa intervenção atualmente nada tem de burocratizante, antes pelo contrário, prestamos um serviço de qualidade à comunidade, de forma célere e eficaz, garantindo a segurança jurídica indispensável ao desenvolvimento económico.
Q: Qual o conselho que gostaria de deixar aos estudantes de direito que desejam seguir essa profissão?
A: Eu gosto imenso de notariado e o conselho que vos posso dar caso decidam optar por esta profissão é:
Não esquecerem que o notário é um profissional liberal que só tem razão de existir porque é um Oficial Público que representa o Estado e, em nome deste, assegura o controlo da legalidade, dando garantia de autenticidade aos atos, como delegatário da fé pública. É por isso uma profissão com um papel fundamental na comunidade e é muito gratificante sentir que fazemos a diferença na prevenção de eventuais litígios.
Contudo, também exige muito estudo e constante atualização sobre as diversas alterações legislativas, jurisprudência, pareceres. Sendo que, àqueles que consideram que o notariado possa estar em vias de extinção sempre diria que: O notariado tal como existe atualmente em Portugal, existe em 21 dos 27 Estados da União Europeia e em 75 Estados em todo o mundo – que constituem a União Internacional do Notariado Latino, de que Portugal é membro fundador – incluindo os Estados do Louisiana e do Quebec, é ainda praticado por cinco notários instalados na cidade de Londres, para titular negócios de grande envergadura, ou cujos títulos tenham que produzir efeitos fora do Reino Unido. Pelo que, temos um papel fundamental que dificilmente será posto em causa.
A todos, desejo muita sorte independentemente dos caminhos que trilharem.